Em terra de cego, quem tem olho é infeliz

Posted by tarrask on September 23, 2008 · 6 mins read

Por favor me perdoe pela minha distância Vergonha é manifestada em minha resistência Ao seu amor
Fiona Apple, To your love

Sempre estamos olhando, às vezes vemos alguma coisa, às vezes imaginamos de olhos abertos, às vezes nos comunicamos com o olhar. Ainda que, quase sempre, estejamos tentando controlar o quê nos está passando adiante. Por azar ou milagre do Universo, não controlamos.

FOCO
As formas estão definidas, e, tal qual uma pintura neoclássica, sabemos exatamente o que nos é apresentado pelo teatro da vida. As dores são dores, as tristezas, tristezas e as coisas boas da vida são o de sempre. Boas. Tudo é “real”.

FORADEFOCO
Leitores, existem coisas que quando olhamos à distância que realmente as queremos de nós mesmos, não conseguimos vê-las. A idéia parece um pouco complicada, mas na realidade é simples. Por exemplo, quem vê o amor entre duas pessoas nunca é uma dessas duas pessoas. Quando queremos que o Sol nos aqueça, num dia frio, voltamos nossos rostos para ele. De olhos bem fechados.

FOCO
Como seria a vida humana sem os olhos? Chamamos cegos os infelizes que, por algum acidente do destino, foram privados dessa capacidade que se traduz em inúmeras atividades e ações imprescindíveis à vida humana. Criamos os óculos e as lentes de contato para corrigir imperfeições. Com estas imperfeições, estaríamos privados até da escrita desse pequeno texto, e talvez também de sua leitura.

FORADEFOCO
Apego a pequenas nuances é um defeito nas boas horas da vida. No final, na hora crucial, quando a Inês é morta, poucos se importam com pequenos detalhes. Os contornos, as cores e as formas já nos são suficientes para que possamos visualizar todo o contexto e sermos completamente felizes. A visão de um beijo não é tão boa quanto o gosto. Há horas que realmente não vale a pena ver.

FOCO
Ainda que os detalhes sejam geralmente ignoráveis, exatamente por serem detalhes, alguns deles são inesquecíveis. Detalhes sempre estarão presentes na estrada longa da vida, já foi dito por um dos grandes mestres. Temos e precisamos muito ver. Precisamos que nos digam o que vêem os outros, para que comparemos, com o uso da razão, as duas visões e tenhamos uma idéia da realidade. Precisamos de olhar acurado, e sempre atento por manter-se assim, de tal modo que não nos passem despercebidas as coisas importantes da vida.

FORADEFOCO
O grande paradoxo da vida é que as coisas importantes da vida não podem ser vistas. Ocasionalmente, podem ser degustadas. Geralmente, ser tocadas. Quase sempre ouvidas. Sempre podem ser sentidas. O olhar é o mais inconstante. Nem sempre entendemos o que vemos, apenas temos uma vaga idéia do que é o nosso objeto de visão. O grande preço da vida é pagar sempre por essa inconstância. Se quisermos ter certeza, sejamos como São Tomé, e sintamos para crer.

FOCO
Ser capaz de olhar é, na maioria dos casos, sinônimo de consciência. O amor é cego, diz o provérbio. A razão para tal é que, quando amamos, não somos capazes de ver defeitos, ou [o que considero mais real, na minha opinião] passamos a vista por cima deles, ignorando-os. Isso significa que podemos fazer coisas que não faríamos normalmente. Esquecemos de olhar seriamente e analisar o que vemos. Se esquecermos de ver, podemos nos enganar. A visão pode enganar, mas geralmente é o modo mais fiel de conseguir reconhecer a realidade. Se não conseguimos nos orientar na simples tarefa de andar no escuro completo através de uma sala, como conseguiríamos lidar com tantos detalhes de vital importância sem os olhos?

FORADEFOCO
Fosse a visão algo de importância tão crucial como se apregoa ao mundo, não haveriam telefones. Ou melhor, estes seriam usados apenas para que as pessoas trocassem informações ditas úteis. E as inúteis? Não haveria nada equivalente ao famoso e adorado papo-de-namorados-adolescentes-ao-telefone-
de-quatro-horas-e-aterroriza-os-pais-que-vão-pagar-a-conta. A voz de alguém é tão importante, às vezes mais, que a visão. Não falarei nada sobre cheiro, gosto ou tessitura da pele de outra pessoa. Seria covardia.

FOCO
Com os olhos, podemos ler os olhos alheios. Estes são, desde a criação dos tempos, o reflexo da alma. Daí poderemos conhecer as pessoas, fazê-las e fazermo-nos felizes, orientar e sermos orientados, sempre vendo o nosso caminho. Esquecendo sempre do que nos é permitido pela vida e pela contingência, mas sempre mantendo no olho da mente, nossa imaginação, o nosso objetivo e mandamento inicial, nossa sempre contínua busca.

FORADEFOCO
Não ignorando os detalhes, mas deixando-os de lado nas boas horas da vida, conseguimos nos concentrar no que realmente importa, e nos detalhes que realmente importam, que valem a pena serem sentidos, ouvidos, tocados, cheirados e degustados. Somente o que vale a pena, nem sempre óbvio, nem sempre claro.
Não vale a pena deixar de ver. Mais um radicalismo tolo. Entretanto, vale a pena ver apenas contornos, silhuetas, sombras e cores. Nada mais complexo que isso. A visão telescópica ou binocular pode ser deixada aos cientistas.
Não deixemos de achar o que vale a pena na vida, usando todos os meios possíveis, inclusive a visão. Mas nunca nos esqueçamos que, quando realmente somos felizes, nós fechamos os olhos.