O vendedor de sonhos

Posted by tarrask on October 07, 2008 · 15 mins read

Sozinho nas nuvens, completamente azul Deitado num edredom, yipee Você não pode me ver, mas eu posso ver você Pink Floyd, Flaming

“Era uma praia grande, vasta, com a areia branca, daquelas que a gente tem vontade de deitar e não levantar mais nunca, onde uma tartaruga corria para o mar, após enterrar seus ovos, que iam nascer dali a algum tempo, o monte de tartaruguinhas recém nascidas e indefesas contra o mundo, que iriam correr para o mar, se as crianças não as pegassem primeiro, ou os animais da praia, e se chegassem na água, teriam que enfrentar peixes maiores, as correntezas às vezes cruéis e suas próprias irmãs na luta por comida até que estivessem grandes o suficiente e a natureza as chamasse para, como sua mãe, sair da água e enterrar os ovos naquela mesma praia de areia branca, com aquele sol de verão do final da tarde, quente e aconchegante, esquentando a água do mar que batia na areia fazendo um barulho modorrento e rítmico, que quase me fazia dormir.
Lá longe a gente escutava o grito dos pássaros, que ficavam tentando pegar algum peixe, ou alguma planta boiando na água, em bandos, o que é extranho, porque aumentava a concorrência. Se eles procurassem sua comida sozinhos, seria muito mais fácil sobreviverem, já que não teriam que disputar com os de sua própria espécie. Eu gostava do canto dos pássaros. Sentia que seus gritos me protegiam dos habitantes da pequena aldeia de pescadores. Na aldeia, eles queriam me queimar, e o pior de tudo era que nunca me explicaram a razão para isso. Não adiantava eu tentar argumentar que não tinha culpa, que não sabia de que crime estava sendo acusada, nem tampouco pedir perdão, já que não sabia, como já disse, qual era a razão. Então me lembrei da minha infância, pouco tempo atrás, quando, antes de vir morar nessa aldeia tediosa e xenófoba, eu vivia na universidade, num quartinho alugado, onde estudava música, se bem que hoje eu achava o canto dos pássaros e o ritmo das ondas batendo no mar muito mais bonitos e harmoniosos do que qualquer sinfonia ou adágio tocado pelos professores e alunos empolados da universidade, tão cheios de si e da teoria musical que esqueciam do verdadeiro espírito que as melodias deveriam trazer. A música me protegia dos moradores da aldeia, e por isso eu ficava ali naquela praia de areias brancas. A tartaruga já tinha ido embora.
1 Então eu vi um grupo de pessoas caminhando pela praia, um bando de jovens, alegres, celebrando o fato de estarem juntos e vivos num entardecer numa praia maravilhosa, não parecendo me ver, sorrindo, brincando uns com os outros, de ambos os sexos. Pensei se haveria a possibilidade de estar junto com eles, mas pensei que eles poderiam ser da aldeia, ou então haverem passado pela aldeia e ouvido avisos sobre mim, mesmo eu não sabendo qual era a acusação que me pesava, mesmo assim me precavia.
O grupo de jovens passou andando, olharam para mim e riram, eu me senti muito envergonhada, como se estivesse nua, e quando olhei para mim mesmo notei que realmente estava, e não havia reparado, o que é muito extranho, uma pessoa estar em algum lugar distante e não notar que não está vestida, não sentir o vento nem o calor do bonito sol do final da tarde, naquela praia de areias brancas. Mas eles continuavam a olhar para mim, eu me envergonhava cada vez mais, tentei me esconder atrás de um arbusto, mas eles riam e riam, e a cada vez riam mais alto, e eu ficando cada vez mais encabulada, e tentei correr, e eles correram atrás de mim, e eu fui correndo pela praia com o grupo de jovens, garotos e garotas, correndo atrás de mim e dizendo nomes estranhos, sem entender, foi quando as lágrimas começaram a escorrer, e eu não conseguia enchergar direito, a areia da praia caía nos meus olhos e se misturava às lágrimas, formando um caldo, e então, quase cega, vendo apenas o branco da areia, eu me joguei na água, para me cobrir e limpar os olhos.
Eles entraram na água atrás de mim, mas quando chegaram aonde eu estava a água cobria meu corpo e eles só viam meu rosto, então uma das garotas começou a falar comigo e explicou que eles não estavam entendendo porque eu estava nua na praia, e que eles haviam achado uma tartaruga e que eles não conheciam os pescadores, então eu fiquei feliz, porque sabia que ainda não tinham ouvido falar da perseguição do pessoal da aldeia, e comecei a contar para eles que a tartaruga havia colocado ovos e enterrado perto de onde eu estava, e eles me perguntaram onde eu morava, no que eu respondi ali mesmo, em qualquer lugar, porque o mundo era muito grande e tinha lugar para todo mundo. Um deles achou a frase muito bonita, disse que eu era uma sereia e começou a alisar o meu cabelo. Então eu resolvi mostrar para eles o meu segredo, que eu não lembrava mais há muito tempo, desde que eu era uma criança e as outras crianças riam de mim quando eu contava que conhecia um reino no fundo do mar, e acho que por isso tinha esquecido como chegar lá e até mesmo que esse reino existia, o que era uma pena. Os jovens tiveram medo de ir, mas todos eles ficaram fascinados quando eu contei que era perto e que os habitantes tratavam muito bem os que vinham de fora, porque nunca tinham visitas e que eles adoravam ouvir estórias do povo que morava em cima da água, porque para eles era muito extranho alguem respirar ar, como para nós é extranho respirar água, mesmo que isso seja perfeitamente normal no reino que eu acabara de lembrar que existia, e convidava aquele grupo para conhecer.
O jovem que disse que eu era uma sereia ficou com medo e resolveu não ir, ele disse que eu era uma sereia e que queria afogá-los, e como ele havia se apaixonado ele seria o primeiro a morrer, e ele era muito novo, por isso não queria morrer. Não adiantou eu dizer a ele que isso era imaginação e que eu não poderia ser uma sereia porque não tinha rabo de peixe, mas ele retrucou que só podia ver meu rosto dentro da água e não tinha visto meu rosto quando eles começaram a correr atrás de mim, como ele ia ter certeza? Então o rapaz ficou na praia esperando que todos nós voltássemos da visita ao reino do fundo do mar. Eu mergulhei na água verde e os outros vieram atrás de mim, seguindo apenas a corrente de água que eu fazia ao nadar, até que chegássemos ao reino.
A garota que havia falado comigo primeiro viu a tartaruga que havia enterrado os ovos na areia e foi atrás, mas eu tentei dizer a ela que o caminho não era aquele, mas as pessoas não entendem o que é dito embaixo da água, a menos que se use uma linguagem especial, de sinais, que a garota não sabia ouvir e eu não sabia falar, então ela fez um gesto me chamando para ir e eu fui, mas os outros jovens resolveram voltar para a praia. Nós seguimos atrás da tartaruga até nos cansarmos e ficarmos sem fôlego, mas estávamos vários metros abaixo da água, e não havia mais como voltar, e a tartaruga continuava nadando muito rápido, e nós ficamos sem ar, e muito cansadas, e então eu desejei não estar mais ali, estar lá na praia, mas agora já deveria estar tudo escuro e os pescadores deveriam estar saindo da aldeia, e eu pensei no que poderia acontecer se eu fosse pega numa rede, e levada para lá, talvez eles resolvessem me prender, mesmo nunca tendo dito o que eu havia feito, e quem sabe até prender a garota que também nadava comigo e que me havia feito perder o caminho que eu conhecia atrás da tartaruga, que voltava para o seu bando depois de ter colocado centenas de ovos na praia. Eu desejei muito voltar para a praia, porque lembrei que quando era pequena me disseram que quando se deseja muito uma coisa que não vai fazer mal a ninguém aquela coisa acontecia, se a pessoa quisesse mesmo, do fundo do coração, e eu queria, por isso desejava. Mas tudo estava escuro e eu não via mais a garota, nem a tartaruga, estava completamente só no
meio do mar, mas queria estar na areia branca da praia, e então eu acordei.”

“Sim, é um bonito sonho.” disse o vendedor de sonhos. “Mas eu não tenho muito dinheiro aqui no momento. Se você quiser, eu te pago duzentos e depois eu te compro outro sonho mais caro, você aceita?”
“Mas você já ouviu o meu sonho, o que te impede de ir embora me pagando apenas os duzentos e nunca mais comprar nenhum sonho meu? E se eu não tiver nenhum outro sonho tão bom assim?”
“Isso é um problema, mas você tem que arriscar. Bem, o sonho é seu, eu estou querendo comprar, mas não tenho tanto dinheiro. Se você quiser, eu posso te dar outro sonho que eu tenho aqui anotado, de um velho que sonhava que era uma borboleta’”
“O senhor ganha dinheiro vendendo os sonhos que escuta e anota por aí, com certeza vai ganhar muito dinheiro com o meu sonho, e só quer me pagar duzentos, eu acho muita esperteza. Eu não trabalho com sonhos, eu vivo de computadores, e computadores não entendem de sonhos’ Eu acho que duzentos e um sonho é muito pouco’”
“Bom, eu estou dizendo que vou comprar o seu próximo sonho por mais dinheiro, mas eu não tenho agora, eu posso ir pegar e amanhã você me conta outro sonho, e eu pago quinhentos pelo sonho amanhã, não fica bom assim?”
“Quinhentos é um bom dinheiro, mas quanto você vai ganhar com o meu sonho? Mil, mil e quinhentos?”
“Eu trabalho com sonhos, eu vendo, negocio, compro, troco, e vou vivendo, mas o mais importante da minha indústria não é o dinheiro que eu ganho, e sim as histórias que eu tenho para contar.”
“E você não acha perigoso me contar os sonhos que você tem guardados aí? Eu poderia anotá-los, ou então guardar na memória e virar sua concorrente.”
“O importante no meu negócio não são os sonhos que eu tenho guardados. Eu gosto de ouvi-los, são bonitos os que eu guardo. Mas não interessa ter muitos sonhos, todo mundo sonha todo dia, só que algumas pessoas lembram. Algumas além de lembrar, contam para os outros. Eu os coleciono e vendo. O importante é divertir as pessoas, mas no fundo, todas elas são criadoras de histórias muito bonitas. O sonho do velho que era uma borboleta era tão bonito que eu chorei enquanto ele me contava. E ontem, eu também sonhei que era uma borboleta.”
“Deve ser estranho sonhar que se é uma borboleta. Não se pode falar com as pessoas.”
“É. Mas todas as pessoas vão admirar a sua beleza, e você pode viver em jardins, apenas passeando, por toda a sua vida, que é bem curta, e por isso você aproveita ao máximo.”
“Mas a vida das pessoas é curta.”
“Não tão curta quando a das borboletas.”
“É verdade.”
“Mas você só quer pagar duzentos pelo meu sonho, que é muito mais bonito que o da borboleta. Ele tem tartarugas marinhas, reinos subaquáticos’”
“Mas também tem os pescadores e o pessoal da aldeia que odeia você.”
“Você pode esquecer essa parte.”
“O final também não é muito bom. As pessoas gostam de finais felizes.”
“Eu não posso controlar o final dos meus sonhos. Quem pode? Eu sonhei sobre isso e só sei que foi assim. Mesmo assim, é um final bonito.”
“Eu não estou dizendo que não é bonito. Eu acho, mas algumas pessoas podem não gostar, e se isso acontecer, eu estarei arruinado.”
“Não necessariamente. Você ainda pode vender para eles o sonho das borboletas, ou então dá-lo de brinde.”
“Tudo bem. Trezentos. Mas você promete que vai sonhar de novo?”
“Eu vou sonhar de novo. Mas da próxima vez, eu não vou vender tão barato.”
“Na próxima vez eu pagarei mais caro pelo seu sonho, virei freguês. Agora eu tenho que ir embora porque tem uma senhora que vai me vender um sonho e eu não posso chegar atrasado, porque está difícil comprar sonhos hoje em dia.”