Coisas que as crianças não sabem nem precisam aprender

Quando a gente fala em mudanças tecnológicas, sempre aparecem dois tipos de chatos, os que dizem que é um absurdo que as crianças de hoje em dia não saibam escrever com caligrafia bonita, o que é uma vitrola, cantar o Hino Nacional nas escolas ou qualquer outro tipo de tecnologia, que chamaremos de chatos saudosistas, porque acham que as soluções do passado eram melhores que as de hoje em dia, e os que dizem que o ebook nunca vai superar os livros de papel, que o computador nunca vai substituir o professor ou que nós nunca vamos conseguir colonizar Marte, que chamaremos de chato atrasador.

O problema da ignorância infantil
As crianças, incrivelmente, nascem ignorando tudo. Pobres, não sabem de absolutamente nada! Pasmem, têm que aprender até a fazer cocô. Ainda bem que o governo/sociedade/mercado/grande irmão/deus resolveu criar escolas e aprendizagem para que se formem adultos que não ignoram as maravilhas do Universo. Aí, vem o grande problema: o que ensinar às crianças?

Nestas horas, aparecem os dois tipos de  chatos, com as suas frases típicas.

O chato saudosista: “As crianças têm que saber tudo o que eu sei para serem felizes!”
O Alex Castro postou há tempos sobre os chatos que combatem a alienação dos mais jovens, um belo texto que resume bem o problema de nos limitarmos à nossa experiência na hora de ensinar crianças (ou mesmo adultos): no mundo de hoje, nem todos precisamos saber como funciona um trumpete, costurar uma peça de roupa ou qualquer outro conhecimento. Lógico, há informações mais importantes que outras (fazer uma cirurgia de coração é mais importante que blogar, mas tergiverso), porém temos que ter a consciência de que nem tudo o que aprendemos é útil, e disso, há coisas que perdem a sua utilidade com o passar do tempo.

Nós que trabalhamos com publicidade ouvimos muito a frase “bom mesmo era no meu tempo, que a gente fazia layout à mão/desenhando/com algum material desses que vendem só em papelaria especializada. Naquele tempo era que se tinha talento.” A frase é uma daquelas falácias repetidas até a exaustão. Havia propagandas horríveis nos anos 80, e outras geniais. Agora, a mesma coisa. As ferramentas mudaram, mas o que importa mesmo é o resultado final. Nem todo desenhista precisa lembrar do cheiro de cola de sapateiro para ser designer ou diretor de arte. Nem todo músico precisa entender a acústica de uma sala de ópera.

O chato saudosista precisa de um pouco mais de choque de realidade. Entender que o mundo mudou um pouco (e a única coisa que é fixa no mundo é que ele muda o tempo todo, vide Calendário Maia e Heráclito[bb] de Éfeso, “tudo flui”), e que prender-se ao passado é mais alienação à atual realidade que não entender a função do gramofone.

Estava lendo há pouco um livro chamado Futuretainement, do Mike Walsh, que tem três milhões e meio de insights sobre o futuro e como a tecnologia está mudando as nossas vidas, tema que adoro. Lá, ele faz uma listinha de coisas que os jovens de hoje em dia não têm a menor ideia do que é. Falo de gente entre 10 e 20 anos, dos países desenvolvidos ou em desenvolvimento, consumidores, cheios de grana, mercado em potencial fantástico. Esta garotada nunca viu:

DVDs com código de região (coisa que existe pouco, é fácil de quebrar e já já acaba); horários de programação de TV (a que horas passa o Chaves[bb]? Não dá pra gravar e ver no TiVO?); proteção de copyright (como? proibiram a biografia do Roberto Carlos[bb]? me passa o pdf); distribuição coletiva (não vamos ver o final de Lost no mesmo dia que nos Estados Unidos? mentiraaaa); janelas de lançamento (o Super Famicon foi lançado no Japão semanas antes do Super NES[bb] ser lançado nos EUA); comprar álbuns inteiros ao invés de faixas individuais (como? comprar o Dark Side of the Moon[bb] todo? Mas eu só quero Another Brick in the Wall[bb]). Etecétera e tal.

As tecnologias vão mudando, gente. Não adianta obrigar as crianças a aprenderem a usar algo que elas nunca vão usar. Afinal, já tem gente nos EUA pensando em abolir as aulas de caligrafia.

E uma TED Talk do ano passado, que eu particularmente achei genial, de Tom Wujec[bb] explicando como usar um astrolábio, instrumento de visualização do céu do tempo das Grandes Navegações, mas com origens muito mais antigas. Eu adorei o vídeo.

O chato atrasador: “a internet nunca vai substituir (ponha aqui o inimigo da vez)”

“As pessoas não vão deixar de ler jornais nunca”, “A televisão nunca vai substituir o rádio”, “A internet não vai substituir a televisão”, “o mp3 nunca vai substituir o vinil (ou o CD, sei lá)”, “o ebook nunca vai substituir o papel”, “o carro nunca vai substituir a carroagem”, “o chocolate nunca vai substituir os homens”, “o silicone nunca vai substituir os peitos reais”, etc etc etc etc.

Tem gente que tem tara por papel, e gasta fortunas em livros. Em bibliotecas. Em conservação. Tem gente que tem tara por áudio, e gasta fortunas em aparelhos de som de altíssima qualidade, capazes de reproduzir o som de pentelhos crescendo. Tem gente que ainda usa agendas de papel, tem gente que usa relógio de bolso, etc.

O que o chato atrasador é, na verdade, é um monstro do wishful thinking. Ele acha que, porque ele quer muito, o mundo vai deixar de mudar, parando exatamente no mesmo lugar que ele parou. Se eu gosto de guitarras elétricas e sons distorcidos, vou torcer o nariz para a eletrônica e os processadores digitais na música. E vou dizer: “os DJs e produtores nunca vão substituir o guitar hero”, e logo depois, Fatboy Slim[bb]vai fazer um concerto pra milhão de pessoas na praia de Copacabana.

Os fatos estão às vezes contra os chatos atrasadores, mas às vezes, ainda não. Ele aponta a uma condição temporal (“a tecnologia AINDA não substituiu”) como uma verdade eterna. Está errado, porque ele acha que a tecnologia não vai evoluir.

O chato atrasador diz que o ebook[bb] é ruim de ler, estraga a vista, é incômodo. Não dá pra matar baratas no banheiro, etc. E a cada dia, tentam inventar um com uma tela melhor, mais cômodo. Já já inventarão um com um pequeno feixe laser, com mira, que permitirá fulminar as baratas que aparecerem enquanto você lê as notícias. Para pessoas com a minha idade, beirando os 30, isso significa O FIM DOS JORNAIS IMPRESSOS. Em maiúsculas. Vou passar tardes inteiras no banheiro, esperando aparecer baratas. Claro, como se este fosse o problema e principal utilidade do papel, matar baratas.

Todo dia, tem um lançamento de algo tentando melhorar uma tecnologia, torná-la ainda mais útil e interessante. Se ainda não conseguimos, não é um sinal de que algum dia, alguém na humanidade não vá descobrir a solução pra isso. É apenas sinal que ainda há caminhos a percorrer.

Solução: livre-se dos chatos

Vocês já usaram uma régua de tabuadas? Aprender a usar aquilo na escola era chato. Decorar os estados do Brasil? Era chato pra caramba. E completamente desnecessário. Mas, no ano passado, teve um dia que eu tentei lembrar o nome de todos os estados e capitais, de brincadeira. Foi divertido. Usar uma tecnologia antiga, uma maneira velha de resolver um problema, ou mesmo ter um astrolábio nas mãos, deve ser interessante. Mas usar aquilo o tempo todo? Não, esqueça. Portanto, se alguém começar a dizer que antigamente a tecnologia era melhor e mais útil, mande voltar pra Idade das Pedras e acender fogo esfregando pedras.

Da mesma maneira, livre-se dos que acham que o mundo nunca vai mudar. Mande estudar História, estudar o passado. A única coisa que nunca aconteceu na história foi tudo continuar como está. Por quê iria acontecer justo agora, que tudo parece mudar cada vez mais rápido?

0 Comments on “Coisas que as crianças não sabem nem precisam aprender”

  1. Bem contundente o seu post. O que as escolas esqueceram por motivo de algum chato saudosista, é que o ensinamento de soluções do passado não serve para aprendermos as soluções, mas a MANEIRA DE PENSAR. Sempre que houve uma inovação no mundo foi porque alguém pessou diferente, além de seu tempo, rompeu uma barreira. É isso que deve ser ensinado, usando como EXEMPLOS coisas que já passaram (claro, nao tem como usar como exemplo coisas que estão por vir). Mas quando será que os educadores vão perceber isso? Opa, já estão percebendo =)
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