Guest post: Tchutchinha

Posted by tarrask on December 13, 2010 · 5 mins read

Nota: a partir de hoje, vou tentar publicar um post de algum autor convidado que queira escrever qualquer coisa de triste. Tema livre, formato livre. Para começar, um texto emocional e familiar de Sassá, criatura que eu amo muito e que eu não consigo associar à tristeza de jeito nenhum. Para mais textos e causos dela, visitem o Photoshopland.

Paulina nunca gostou de seu nome. Preferia ser chamada de Poli.
Era a filha mais velha de um casal de imigrantes russos que fugiu da Europa por causa das pogroms (perseguições violentas aos judeus).
Seus pais chegaram ao Brasil no começo do século passado e, para sobreviver, compravam frutas em feiras populares e as revendiam de porta em porta.
A língua era um dos maiores obstáculos, mas aprendiam tudo o que podiam no dia-a-dia, negociando com a clientela e também nas aulas de português ministradas pelos judeus que estavam aqui há mais tempo.
No começo foi duro. Moravam em um quartinho e juntavam cada vintém, se privando de tudo e levando uma vida extremamente modesta.
Depois de anos conseguiram juntar algum dinheiro e Favish, pai de Poli, começou um pequeno negócio no centro da cidade.
O negócio era a Angélica, uma confecção que produzia ternos e camisas sociais muito baratos e de baixa qualidade.
Não demorou muito e as roupas cairam no gosto dos nordestinos que vinham para cá ajudar a construir São Paulo. Eles eram pobres e precisavam de roupas para entrevistas de emprego e também para mandar para os parentes que encomendavam trajes para vestir os mortos em seus enterros.
Paulina, como a maioria dos imigrantes judeus da época, cresceu no bairro do Bom Retiro, que na época falava mais yiddish do que português. Foi lá no “Bomra” que conheceu Dólio, filho  de um polonês que, para conseguir fugir de seu país, que na época era extremamente anti-semita, cortou um pedaço do dedão direito em uma das máquinas da fábrica onde trabalhava. Com o dinheiro da indenização comprou uma passagem e veio de navio para o Brasil, esse país que tinha fama de acolher bem a todos os imigrantes. Dólio tinha formação em música clássica e era violinista do teatro municipal de São Paulo.
Apaixonados Poli e Dólio se casaram e tiveram 3 filhas e um filho. E 4 netas e 4 netos.
Tive a felicidade de ser a terceira neta de duas pessoas tão incríveis.
A minha relação com a minha avó sempre foi de muito carinho e admiração. Ela não era uma pessoa amorosa, mas era sábia e sempre tinha tempo para conversar e dar bons conselhos enquanto preparava um bolo, algum prato típico judaico ou dava uma pausa em suas leituras diárias.
Aos 54 anos de idade minha avó, que de tão culta era chamada de enciclopédia pelos netos, sentiu falta de ter cursado uma universidade (coisa que muito poucas mulheres faziam naquela época) e, sem contar para ninguém, se matriculou em um cursinho pré-vestibular.
Todos os dias ela dizia que ia visitar o irmão quando, na verdade, pegava um ônibus para assistir aula com pessoas eram 45 anos mais jovens que ela.
A família só descobriu que ela havia prestado vestibular quando uma irmã do meu avô, procurando pelo nome de um neto na lista do vestibular da FUVEST de 1985, viu o dela e, confusa, pegou o telefone e ligou imediatamente para o meu avô.
Não havia confusão nenhuma. Ela de fato estava entre os primeiros colocados da faculdade de direito da Universidade de São Paulo, a São Francisco.
Nos 5 anos de curso nunca faltou a uma aula e se graduou com todo tipo honrarias.
Mas não para por ai. Ela também usava seu tempo para se dedicar ao trabalho social. Foi durante muito tempo a presidente da N’amat Pioneiras, uma organização judaica de benemerência presente em todo mundo. Seu trabalho foi tão notável que o governo de Israel mandou construir uma creche com seu nome. A creche situada em Jerusalém existe até hoje e abriga crianças israelenses que perderam seus pais em atentados terroristas.
Em 2010 completaram-se 10 anos que eu deixei de ouvir a voz dela me chamando de “tchutchinha”.
E a cada ano que passa a saudades aumenta, a admiração cresce e o meu nariz fica mais parecido com o dela.

Para ler ouvindo Mariah Carey – Dreamlover
(Ok, a escolha da música é pior impossível. Mas acontece que uma vez, durante uma viagem com minha avó, eu estava assistindo à MTV quando passou esse clip e ela curtiu tanto a música que me fez gravar uma fita K7 com as músicas da Mariah Carey para ela).