O poeta francês Stéphane Mallarmé compôs no século XIX Un coup de dés, que chamou de um poema prismático, no qual os versos seriam subdivisões que poderiam ser recombinadas, como peças, ou ilhas de significação, como um Lego que permite criar vários brinquedos diferentes. Em português, o Haroldo de Campos traduziu e também fez várias experimentações com textos não-lineares. Raymond Queneau fez Cem Mil Bilhões de Poemas, um livro que se propunha combinar os versos de seus sonetos, criando possibilidades praticamente infinitas de serem experimentadas.
Enquanto estudava gamedesign, me meti em um labirinto infinito de narrativas não-lineares: dos jogos open world, o RPG de mesa, os MUDs e branching stories, entre outras mil possibilidades. Até a publicidade, com seus múltiplos pontos de contato, narrativas paralelas, retargeting e campanhas integradas, pode ser considerada uma narrativa não-linear.
Quando um freela me pediu para adaptar o conto de Chapeuzinho Vermelho para formato HQ, e depois, tentando contar a história para minha filha em uma versão português europeu, descobri algo interessantíssimo: não existe um cânone, uma história certa, uma versão universal de Chapeuzinho Vermelho. Às vezes, o Lobo morre, outras vezes o Lenhador enche-lhe a barriga de pedras e depois costura(!) o pobre animal, e em outras, ele é simplesmente expulso da casa. O destino da Avó também é diferente dependendo da versão.
No mundo da literatura, histórias únicas e fechadas hoje me parecem a exceção. Shakespeare só escreveu duas histórias originais, e todas as outras são adaptações e versões. Hamlet já tinha milênios quando o Bardo fez a sua, por exemplo. Drácula é um personagem tão sem dono que a história mais famosa chama-se Drácula de Bram Stocker. Mil outras narrativas também são assim, sem dono, sem fonte certa.
Há muito o cânone não é escrito em pedra. Depois do papiro e do papel, agora é escrito em impulsos elétricos, a matéria mais fluida do universo. Falta muito pouco, mas muito pouco mesmo, para que possamos escrever as nossas palavras no ar.
No meio desse carnaval apropriativo, peguei um arquivo com uma série de poemas e resolvi recombiná-los. Os poemas originais, escritos por mim, estão em Segredos. Resolvi utilizar a tecnologia para fazer o que Queneau não pode: com o simples toque de um botão, recombinar o texto, explorando as possibilidades combinatórias de um poema de três versos, utilizando como base mais de meia centena de textos. Segundo meus pequenos cálculos, são 330 mil possibilidades, mas não confio muito na minha matemática.
É uma brincadeira ludo-teórico-poética, sem muito mais pretensão que terminar um programa e publicá-lo na loja de aplicativos da Apple.
Mas dizem que o acaso permite que se encontrem poemas melhores que os originais.
O projeto wabisabi
O projeto wabisabi nasceu com estes haikus – chamados segredos – feitos lentamente, quase ao acaso, durante alguns anos. A cada um deles, acrescentei uma história.
Depois de abandonar os textos por um bom tempo, apresentei o final a algumas pessoas, com resultados díspares.
Segredos
Resolvi voltar ao nome original e publicar os poemas em formato ebook, disponível na Amazon. Os segredos estão numerados de uma maneira particular, que não busca fazer muito sentido, assim como também a maioria dos versos.
1 milhão de folhas – uma biblioteca de infinitas possibilidades
Em 2018, resolvi misturar os poemas de forma eletrônica, o que deu origem ao app 1 milhão de folhas, que recombina os versos em centenas de milhares de possibilidades poéticas diferentes, em uma versão iPoética na tradição de Quineau e Mallarmé. Os poemas deste app são gerados a partir da combinação aleatória dos haikus do livro de meditações chamado Segredos. O app pode ser encontrado na iTunes Store, apenas para aparelhos da Apple, porque bem, fui eu que programei e é a única linguagem que conheço. Além dos meus textos, a experiência tem direção criativa de Cris Santos, e as fotos também são minhas, feitas em uma viagem ao Japão em 2015.