Treino e ensaio

Existem dois tipos de arte: a que a gente pode ensaiar e a que não pode.

Na música, podemos aprender a imitar os sons de outro artista, até o extremo dos fóruns de guitarristas onde aprendemos os pedais usados, os efeitos, com o objetivo de executar as mesmas notas, no mesmo timbre.

Na dança, é possível repetir o mesmo movimento quinhentas vezes, para fazê-lo igualzinho em frente à plateia.

Se alguém tentar, na literatura, escrever o Don Quijote do mesmo jeito que Cervantes fez, ipsis litteris, ou é maluco ou um personagem de Jorge Luis Borges, o que vem a dar no mesmo.

O treino, na literatura, não é a cópia, não é a imitação, mas termina sempre sendo uma tentativa de originalidade. Escrever igual a alguém, mas diferente. Copiar, mas mudando as palavras.

Mesmo alguém que escreve todos os dias um diário, com o simples intuito de esquentar os dedos, de registrar o que pensou, viveu ou sentiu, está deturpando, editando, alterando, e no fim das contas, até este tipo de treino contêm uma forma de originalidade.

Sinto inveja das pessoas que podem treinar. Sentar por quinze minutos e fazer escalas. Sentir os músculos dos dedos soltarem, o ouvido começar a perceber nuances, brincar com a melodia por cima de uma harmonia alheia. Pulsar num ritmo, depois em outro, sem compromisso.

Cada texto tem uma pulsação única, quase um DNA, e tirando algumas formas de poesia, é impossível transplantar de uma obra para outra. O lugar onde caem as minhas vírgulas, os espaços das minhas frases, a métrica única da verborréia. A escolha quase ilimitada das combinações léxicas. Verde. Haiku. ;, Ufia3as.

Nem o idioma, nem a lógica, nem a gramática são limitações realmente válidas. Até mesmo é possível não escrever, ter aquelas ideias rodando o cérebro por alguns instantes e depois esquecê-las, como um caderno velho cheio de garatujas. Isso não quer dizer que o texto não existiu, só que não existe mais.

A única semelhança é que, como as outras formas de expressão, também não precisa chegar em lugar algum.