Se há algo culturalmente intransponível no caráter ibérico é a burocracia. O cartório. A pequena lei burra. Sim, é preciso reconhecer a firma para pedir um documento público, mas ninguém vai para a cadeia se tiver um bom advogado.
Todos conhecemos exemplos enlouquecedores da intransigência de um funcionário que interpreta o algoritmo legislativo com má-vontade. Pior que uma máquina? Com certeza. Custa tempo às pessoas, destrói o humor da população, não resolve nenhum problema. E é muito mais caro. Por um trabalho burro e desleixado, recebe nababescamente, até o fim da vida e com aposentadoria especial.
“Não, mas…”
Eu sei, há exemplos contrários, existem dedicadas pessoas que zelam pelo seu dever cívico e tal. Por isso falo em questão cultural: pertence ao povo. Aliás, a vários povos. Junto com este amor ao requerimento, ao formalismo estúpido, ao pé-da-letra, existe também um certo amor próprio: estou certo, o outro deveria fazer o que eu digo. Não há circunstâncias, só o papel e as regras.
Daí nascem o Diploma de Artista (passei na prova?), a revisão do exame médico para o amputado (certeza que não nasceu outro pé?) e todos os comprovantes, fotocópias e carimbos.
O burocrata é, antes de tudo, um forte. É praticamente invencível. Sua única kryptonita é o chefe. Ordens superiores são a única força absoluta capaz de vencer sua irredutível imobilidade. Todas as outras armas, da submissa obediência às ameaças de violência, passando por choro em público e ranger de dentes, são inúteis para dobrar a vontade de um não emitido por funcionário do Estado armado de seu pequeno poder.
Trata-se apenas de um jogo, no estilo dos videogames dos anos 80, como River Raid ou Pac-Man. Um ciclo infinito, sem vitórias, que só acaba quando o jogador se declara vencido.