Salvando vidas e perdendo a alma

Hoje de manhã, o twitter está em polvorosa¹ porque umas médicas cearenses vaiaram uns médicos cubanos em Fortaleza, literalmente umas branquinhas descendentes de portugueses e espanhóis xingando um negro de escravo (desculpem, não existe maneira politicamente correta de escrever a frase, então fica a foto mesmo).

medicas xingando cubano

medicas xingando cubano que achei aqui

Conheço alguns médicos. Lembro até de conversar direito com uma prima, extremamente consciente e contrária à vinda dos cubanos e também dos espanhóis e portugueses e chineses e todo o resto. Expus meus argumentos. Continuo achando que o Brasil precisa importar médicos e engenheiros, pelo simples fato de que não temos o suficiente. Nunca tivemos. A única coisa que nós temos em excesso é advogado e jogador de futebol, mas só podemos exportar os segundos, porque os primeiros não podem trabalhar em outros países por razões óbvias².

“Vamos criar um órgão do estado para validar diplomas. Mas se o estado validar, não vale.”

A grande reinvidicação dos médicos é capciosa. Querem que se revalide os diplomas. Submeter profissionais estrangeiros com 30 anos de experiência a uma provinha tipo a da OAB, pra saber se podem exercitar a profissão. Como vocês sabem, o sistema de revalidação de diploma estrangeiro no Brasil não funciona. Minha irmã, formada nos estrangeiros, demorou 3 anos para revalidar uma graduação em Letras. Eu fiz metade do processo de validação de um mestrado no Brasil e parei. É mais fácil escrever uma tese e assistir as aulas de novo. De boua na lagoa. O processo de revalidação é extremamente longo, burocrático e cansativo. Só que o problema de falta de médicos é urgente, não é tratamento de câncer, é hemorragia. Tem que ser tratado agora. E na hora da hemorragia, qualquer pessoa pode fazer um torniquete.

Não concordo com o fato das leis trabalhistas aplicadas aos médicos cubanos ser diferente dos espanhóis, por exemplo. Quando eu fui importado por uma multinacional irlandesa para trabalhar na Disneylândia, meu contrato, pagamento e aposentadoria foram reguladas pelo Tio Sam, e por isso eu não pago INSS. Acho que os médicos cubanos devem pagar FGTS e se submeter a todas as burocracias brasileiras. Entretanto, fica claro que é bem possível que eles queiram ir embora ao enfrentar a décima-sexta fila para validar a foto três por quatro. A burocracia é foda. Acho que se o médico cubano quiser desertar, tem todo o direito de fazer isso³.

Mas não adianta tentar convencer os médicos. Eles são deuses.

Se vocês me cobrarem, um dia eu escrevo uma crônica sobre o dia em que eu vi um juiz de toga pela primeira vez. É uma história legal. Mas o assunto de hoje é médico.

Não vou negar* que o conhecimento que os médicos têm é importante pra gente continuar vivo. Não vou negar que me parece impressionante serrar o crânio de uma pessoa, arrancar uns pedacinhos de carne e fazer a pessoa viver. Não vou negar que abrir a caixa dos peitos de alguém e costurar umas veias da perna no coração batendo me parece um super-poder. Alguns médicos fazem isso com a facilidade com a qual eu escrevo esse post. Sim, esse cara é bem mais foda que eu.

Mas a Medicina é vasta e a atividade dela é bastante diferente. A minha mãe é médica. Já se aposentou e hoje dá aulas para futuros médicos. Acho que nunca a vi vestindo um jaleco. Ela trabalhava com Saúde Pública. É especialista em epidemias. Do tipo, passou décadas viajando pros interiores do Brasil, treinando gente, ensinando e salvando vidas nos cafundós. A minha primeira viagem, com meses de idade, foi pro Piauí, onde eu aprendi a sentar*. Acho que ela nunca operou ninguém. Ela planejava a saúde pública. Fazia as contas de pacientes em milhares, milhões. Combatia doenças bestas e facilmente tratáveis, tipo Dengue ou desnutrição. Doenças, aliás, cujo tratamento total deve custar dois reais, três reais. Coisa que se cura com soro caseiro, nem precisa de remédio de farmácia.

O que os médicos estrangeiros vão fazer é algo parecido com o que ela fez durante toda a vida. Ou uma extensão, o trabalho de campo que vem depois de um planejamento. Não duvido que gente que trabalhou com ela agora esteja coordenando essa importação de médicos. Ela ensinava enfermeiras a vacinar e a ajudar os pacientes que não sabiam ler nem escrever a fazer coisas básicas. Treinava assistentes sociais a ensinar pessoas a lavarem as mãos. A ferver água. Coordenava campanhas de vacinação. Os médicos lá nos cafundós não vão tratar câncer. No máximo, vão diagnosticar. Vão combater coisas que você, livre-pensador urbano de uma metrópole mundial, está livre há três gerações.

Médicos não têm escravos, como os generais romanos. Quem vai dizer-lhes Memento Mori?

Entretanto, o ego dos doutores brancos que vivem na beira-mar do Nordeste, na Vila Olímpia em São Paulo ou em um apartamento funcional em Brasília não aguenta escutar que os estrangeiros vêm resolver esse problema que os cafundós têm. Mesmo que eles nunca nem sonharam em ir morar em uma cidade que não tem TV a cabo*.

Médicos são assim. Quase todos são filhos de famílias estáveis, precisaram de muito tempo e muito apoio familiar para terminar o curso, e durante as aulas sempre escutaram que são especiais e que a profissão deles é, se não a mais importante, uma das mais importantes de todas. As palavras têm poder, e uma das que para descrever a sua profissão é vocação*, um sinal da importância que dão à sua missão. É aquela história, se você passa muito tempo dizendo a uma criança, adolescente ou estudante universitário que ele é importante, ele termina acreditando. E o pior, se os clientes deles (no caso, pacientes), também continuam repetindo “obrigado doutor, o senhor salvou a minha vida”, e trazendo galinhas para agradecer, eles realmente vão acreditar que são as pessoas mais importantes do mundo.

Na profissão deles, os pacientes vivem ou morrem. Eles nunca morrem. Ou pelo menos, nunca entram em contato com a própria morte. É por isso que também quase nunca tratam a si mesmos ou os seus familiares.

Pra terminar, acho que a sua avó estava certa.

Enfim, doutores, acabo com aquela lição bem besta que a sua avó deu, quando você estava chorando e esperneando que queria ficar assistindo televisão até tarde.

“Quando você grita, chora ou vaia, perdeu o argumento. Fim da discussão.”

– Sua avó.

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1- Citação obrigatória do Destino de Miguel.

2- Razão óbvia: a língua. Só há dois países que usam o Latim como vernáculo nos tribunais, e o outro é o Vaticano.

3- Mas anyways, eu moro em Miami e devo ter uma visão bastante parcial por causa dos meus amigos cujos pais foram presos políticos por décadas.

*- Não vou negar que sou louco por você.

*- É verdade. Aprendi a sentar no Piauí. Minha babá me contou.

*- Não é cinema. É TV a cabo. Não tem. Nem internet rápida. Fuck, não tem nem escola de segundo grau, cacete.

*- Significado: Vocação é um termo derivado do verbo no latim “vocare” que significa “chamar”. A vocação é uma inclinação para exercer uma determinada profissão ou um talento (aptidão natural) para executar algo. O sentido original expressa um chamado espiritual para que as pessoas sigam uma religião ou uma missão divina destinada a alguns cristãos para exercerem o sacerdócio. A vocação sacerdotal é vista como um chamado de Deus por aqueles que se sentem inclinados a exercerem o ministério paroquial.

 

 

 

3 Comments on “Salvando vidas e perdendo a alma”

  1. Eu sempre ouvi um ditado em casa que falava que o problema entre médico e deus é que deus não pensa que é médico.

    Acho que a frase cabe muito bem para os médicos brasileiros que estão hostilizando os cubanos. Acham que são deuses, que só eles podem exercer a Sacra Medicina em território nacional e mostram o chorume que invade os jalecos quando sua posição privilegiada é ameaçada.

    1. Agora eu fiquei com medo de um médico argentino que trata o Papa. Já pensou no tamanho do ego da criatura? corram pras montanhas.

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